A Trégua das Águas
A Lei da Jângal – que é a mais velha lei do mundo –
atende a quase todos os acidentes que possam acontecer para o Povo da Jângal.
Código mais perfeito, o tempo e os costumes nunca fizeram.
Mowgli vez por outra ficava impaciente com as
constantes recomendações de Baloo, o urso pardo, que sempre lhe dizia:
“Esta é a lei que vigora em nossa selva e que é
antiga como o céu!”.
Como o cipó envolve a árvore, a Lei do Lobinho
envolve a todos nós. E depois que tiveres vivido tanto quanto eu, Irmãozinho,
verás que todos os filhos da Jângal obedecem ao menos uma lei, e não vai ser um
acontecimento agradável de se ver.
Essa
lição entrou por um ouvido e saiu pelo outro, porque o menino nunca tinha
passado por nenhum problema sério. Mas chegou o dia em que as palavras do sábio
urso se confirmaram: Mowgli teve oportunidade de ver toda a Jângal agindo sob o
comando da Lei.
Houve
um ano em que as chuvas de inverno foram muito escassas. Mowgli encontrou com
Ikki, o porco-espinho, que lhe avisou que os inhames selvagens estavam secando.
E daí? – perguntou Mowgli.
Nada, agora, respondeu Ikki, com os espinhos
eriçados dum modo desagradável. Mais tarde veremos. Dize-me,
Irmãozinho, ainda aparece água na Roca das Abelhas?
Não. Ela esta se indo toda, mas não tenho nada com
isso, respondeu Mowgli.
Mau pra ti, rosnou Ikki saindo.
Mowgli contou a conversa ao urso. Baloo assumiu uma
expressão preocupada porque
estava notando que polegada a polegada, o
asfixiante calor invadia o coração da Jângal. Estorricava-se a vegetação,
lagoas esgotavam-se, transformadas em lameiros. Pressentindo o que estava por
vir, pássaros e macacos já tinham emigrado para o norte, cerdos e veados mais
se aproximavam das aldeias dos homens, que também sofriam com a
seca. Só Chil, o abutre, engordava. Como havia carniça!
Mowgli
que ainda não conhecia o verdadeiro sentido da palavra fome, precisou recorrer
ao mel azedo, de três anos de idade, das colméias abandonadas e também aos
vespeiros, atrás de suas ninfas para saciar-se. Todas as criaturas da Jângal
tinham a pele sobre os ossos. O pior, porém era a falta de água.
O
calor aumentava sempre, fazendo desaparecer toda a umidade. Por fim o
Waingunga, já muito baixo, tornou-se a única reserva de água a correr na
Jângal.
Quando
Hathi, o elefante selvagem, viu aparecer no centro do rio Waingunga um banco de
pedra grande, seco e azulado, percebeu que estava olhando para a Roca da Paz e,
como seu pai havia feito cinqüenta anos antes, levantou a tromba para proclamar
a Trégua das Águas: e a partir desse momento ficou proibido matar
nos bebedouros, porque beber é mais importante que comer.
A
seca foi piorando: os búfalos já não encontravam pântanos para se
refrescar, nem pasto para se alimentar; as cobras já haviam deixado a Jângal
para os rios que também estavam murchos; as tartarugas de rio tinham acabado,
muitas delas nos dentes afiados de Bagheera; e a Roca da Paz cada dia se
mostrava mais comprida, qual o dorso de uma cobra.
Mowgli,
com sua pele nua deixava transparecer todo o seu padecimento: tinha os cabelos
descorados e ressecados pelo sol, suas costelas pareciam vimes
dos balaios feitos pelos homens, suas pernas e braços pareciam bambus, onde
seus joelhos e cotovelos eram os nós, mas mantinha-se com o olhar firme e calmo,
recomendação de Bagheera para que não perdesse o sangue frio.
Certo
dia vinham os dois conversando com o urso e os lobos sobre os tempos difíceis e
como eram grandes caçadores, já que o menino corria atrás de ninfas dos
vespeiros e nossa pantera havia atacado um boi na canga... e resolveram ir
reunir-se com os outros animais na margem do Waingunga, de onde se avistava a
Roca da Paz. Lá estava Hathi, o guardião da Trégua das Águas, tendo
ao redor seus filhos, magérrimos, com as pelancas rugosas ainda mais
ressaltadas, os veados, porcos-do-mato e búfalos, quando Shere Khan chegou até
ali e meteu seu focinho na água, para beber.
Que coisa abominável é essa que nos traz? – Mowgli
perguntou ao tigre manco, enquanto observava manchas escuras e oleosas que
flutuavam na água, a partir do ponto onde ele bebia.
Um homem! – disse friamente Shere Khan – Faz uma
hora que matei um homem.
Entre os animais se produziu um silêncio profundo
que logo se transformou em murmúrio e terminou virando um surdo clamor.
Você não tinha outra caça disponível? – perguntou
Bagheera.
Não o fiz por necessidade, mas por gosto – e
acrescentou, sem dar tempo às queixas dos animais – agora quero beber
tranqüilo; alguém se atreve a apresentar alguma objeção?
Você matou pelo prazer de matar? – perguntou Hathi,
que se mantivera em silêncio até aquele momento.
Isso mesmo – respondeu o tigre, que sabia muito bem
que quando Hathi perguntava o melhor era responder prontamente. – Era meu
direito, pois esta noite é minha. Você sabe.
Sim, eu sei – disse Hathi – você já bebeu tudo o
que necessitava, agora dê o fora. O rio é para beber, não para sujá-lo. Somente
o tigre manco pode ostentar o seu direito nesta estação em que sofremos todos,
tanto os homens como o povo da selva. Volte para o seu covil, Shere Khan!
As últimas palavras soaram como trombetas de prata
e Shere Khan, sem pronunciar o menor rugido, se levantou e afastou-se
imediatamente. O silêncio que se seguiu só foi interrompido depois de alguns
minutos pela voz respeitosa de Mowgli.
Que direito é esse de que fala Shere Khan? –
perguntou alto, para que Hathi pudesse escutá-lo.
É uma história antiga, quase tão velha quanto a
própria selva. Se quiserem escutá-la, fiquem todos em silêncio, os que estão
nesta margem e os da outra, e eu lhes contarei. Então Hathi lhes
contou uma velha história, tão velha quanto a selva e que descreve como o medo
se apoderou dos seus habitantes. Mas isso é uma outra história...
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