União
dos Escoteiros do Brasil
Região
Escoteira de Mato Grosso
G.
E. UNISELVA - 02°/MT
Histórias
da Jangal
Alcatéia
Mista Seeonee
Ramo
Lobinho – Histórias da Jangal
CAPÍTULO IV - A Embriaguês da Primavera
Dois anos depois da morte de
Akelá na grande luta com os dholes, Mowgly completou 17 anos. Parecia mais
velho porque o intenso exercício, a forte alimentação e os banhos frequentes lhe
haviam dado força e desenvolvimento acima da idade. O povo da Jângal, que já o
temia pela astúcia, passou a temê-lo pela força.
Um dia estavam Mowgly e Bagheera
na encosta do morro frente a Waiganga. Era o fim
do inverno. Sentado, Mowgly
contemplava o vale semi-desperto. Um pássaro lá embaixo trinava as primeiras
notas, ainda incertas, do canto que iria entoar na primavera. Embora esse canto
ainda fosse só um ensaio, a pantera reconheceu-o.
- Eu não disse que o tempo das
falas novas vem próximo? Relembrou ela. É Ferao, o
pica-pau escarlate. Ele não
esqueceu. Ora, eu também preciso recordar o meu canto e pôs- se a ronronar para
si própria.
– Não há nenhuma caçada para
hoje, observou mowgly.
– Irmãozinho, estarão teus 2
ouvidos tapados? Isto que canto não é palavra de caça, mas canto que quero ter
pronto para a primavera.
– Tinha me esquecido. Reconheço
muito bem a chegada das falas novas, estação em que tu e os outros correreis
para longe, deixando-me sozinho, respondeu mowgly queixoso. Vós debandais e eu,
Senhor da Jângal, tenho que viver sozinho.
Até aquele ano Mowgly se
deleitara com o retorno das estações. Era ele quem, antes de todos, descobria o
primeiro olho da primavera e as primeiras nuvens da estação. Sua voz era ouvida
em todos os lugares, a fazer coro com os outros animais. Como para todos os
outros, a primavera era para ele o tempo de correr, só pelo prazer de correr do
anoitecer ao amanhecer e voltar ofegante, rindo-se, cheio de flores raras.
O povo da Jângal está
constantemente ocupado na primavera; Mowgly via-os sempre rosnando, uivando,
gritando, piando , silvando, conforme a espécie de cada um. Suas vozes mostram-se
diferentes então; e por isso a primavera no Jângal é chamada o Tempo das falas
Novas.
Mas naquela estação o humor de
Mowgly estava mudado, quando tentava responder algum animal as palavras embaraçavam-se-lhe
nos dentes, uma sensação de pura
infelicidade o invadiu da cabeça
aos pés.
– Comi bem , disse o rapaz a si
próprio, bebi bem, minha garganta não arde nem aperta.
Mas tenho o estômago pesado e
tratei mal a Bagheera e outros. Ora me sinto quente, ora frio; ora nem quente
nem frio, mas apenas furioso contra não sei que. Ah-ah! É tempo de dar minha
carreira. Esta noite cruzarei as montanhas; sim darei uma corrida de primavera
até os pantanais do norte, ida e volta. De muito que caço sem esforço, isto me
enerva.
Como não encontrou nenhum de seus
irmãos lobos para correrem juntos, Mowgly saiu
sozinho, aborrecido por isso.
Assim correu ele aquela noite, ás
vezes gritando, ás vezes cantando; correu até que o
cheiro das flores o visou que
estava próximo dos pantanais e longe, muito longe do seu Jângal.
Avistou uma estrela bem baixa e
olhou pelo canudo da mão.
– Pelo touro que me comprou é a
flor vermelha, a flor vermelha que deixei pra trás de
mim quando me mudei para a
alcatéia de Seoni. Agora, que a vejo de novo, dou por fim a minha corrida.
Mowgly correu descuidadamente
pela relva úmida até alcançar a cabana de onde vinha a luz.
Uns cães latiram. Ele emitiu um
profundo uivo de lobo que fez os cães calarem. A porta da cabana abriu-se e uma
mulher espiou no escuro. Dentro, uma criança começou a chorar.
– Dorme, disse a mulher. Foi
algum chacal que uivou para os cães.
Escondido nos arbustos, mowgly
tremeu. Aquela voz, ele a conhecia. Mas para melhor se certificar, gritou
baixinho, surpreso de ver como a língua dos homens lhe vinha fácil:
– Messua! Messua!
– Quem chama? A mulher indagou
com voz trêmula.
– Nathoo! Respondeu Mowgly, pois
fora esse o nome que lhe dera Messua quando o
encontrou pela 1ª vez.
– Vem meu filho.
Ela o acolheu, deu-lhe de beber e
comer e apresentou-lhe o irmãozinho. Cansado Mowlgy deitou-se e mergulhou em
profundo sono. Quando acordou Messua sorriu e serviu-lhe outra refeição. Nesse
instante irmão Gris chamou-o lá fora. Era hora de ir.Messua pôs-se ao lado de Mowgly
humildemente ele era realmente um Deus da Jângal, mas quando o viu abrir a
porta para sair, a mãe que havia dentro dela a fez abraça-lo várias vezes.
– Volta outra vez, repetiu
Messua. De dia ou de noite, esta casa estará sempre de porta aberta pra ti.
A garganta de Mowgly aperto-se.
Sua voz parecia como que arrancada à força quando
respondeu: Sim, voltarei!
- E agora, murmurou depois que
saiu, tenho minhas contas a ajustar contigo, irmãi Gris.
Por que vós 4 não viestes quando
vos chamei, há tanto tempo?
– Tanto tempo? Foi ontem, eu...
nós estávamos cantando no Jângal os novos cantos,
porque o tempo das falas novas é
chegado. Não te lembras?
- É verdade, é verdade...
- E logo depois dos cantos, segui
teu rastro. Passei à frente dos outros e vim até aqui.
Mas, ó irmãozinho, que te
aconteceu que estás de novo comendo e dormindo na alcatéia dos homens?
- Se tivesses vindo quando te
chamei, isto nunca se daria, respondeu Mowgly, apressando o passo.
- E agora como será? - Perguntou
o lobo.
Mowgly ia responder, quando uma
mocinha trajada de branco surgiu no caminho que levava à aldeia.
Mowgly segui-a com os olhos por
entre os talos de milho até que seu vulto se perdeu ao longe.
- E agora? Agora não sei...
respondeu finalmente, suspirando. Porque não vieste quando te chamei?
- Nós te seguimos - murmurou o
lobo. Nó te
seguimos sempre, exceto no tempo
das falas novas.
- E me seguireis na alcatéia dos
homens também?
- Não o fizemos na noite em que
os de Seoni te expulsaram do bando? Quem te despertou quando dormias nas roças?
- Sim, mas me seguireis de novo
– Não te segui eu esta noite?
– Mas me seguireis sempre,
sempre,sempre e outra vez, outra vez e outra vez, irmão
Gris?
O lobo calou-se por uns instante.
Quando abriu a boca foi para dizer a si próprio:
- A pantera negra falou
verdade...
E disse que...
... que o homem volta sempre para
o homem, no fim Raksha , nossa mãe, também disse.
E Akelá também na noite do ataque
dos Dholes, acrescentou Mowgly.
E também Kaa, a serpente da
rocha, que possui mais sabedoria do que todos nós.
- E tu irmão gris, que disses tu?
Eles já te expulsaram uma vez.
Eles te feriram nos lábios com pedra. Eles mandaram
Buldeo matar-te. Eles queriam
lançar-te na flor vermelha. Tu e não eu , disseste que eles eram muito maus e
insensatos. Tu, e não eu, eu sigo meu próprio povo, foste admitido no Jângal
por causa deles. Tu, não eu compuseste cantos contra eles, ainda mais amargos
que os nossos contra cães vermelhos.
– Pára! Que estás dizendo?
O lobo Gris ficou uns instante
calado, depois falou:
– Filhote de homem, senhor da
Jângal, filho de Raksha, meu irmão de caverna: embora
eu fraqueie nas primaveras, o teu
caminho é o meu caminho, o teu antro é o meu antro, a tua caça é a minha caça e
a tua luta de morte é a minha luta de morte. Falo por mi e pelos outros 3.
Mas que irás dizer ao Jângal?
- Bem pensado. Vai e reune o
conselho na Roca, que quero dizer a todos o que tenho no coração, mas talvez
não compareçam: no tempo das falas novas todos esquecem de mim...
– Só isso? - Perguntou o lobo
Gris, pondo-se em marcha.
Em qualquer outra estação aquela
novidade teria reunido na Roca o povo inteiro do
Jângal; mas era o tempo das falas
novas e andavam todos dispersos, caçando, matando. Para um e para outro, corria
o lobo Gris com a nova:
– O senhor do Jângal volta para
os homens! Vamos à Roca do Conselho!
E ruidosos e felizes os animais
respondiam:
– Retornará nos calores de verão.
Vem cantar conosco.
– Mas o senhor do Jângal volta
para os homens, repetia.
– E daí! O tempo das falas novas
perde alguma coisa com isso?
Desse modo, quando Mowgly, de
coração pesado chegou à Roca, onde anos atrás fora
trazido ao conselho, apenas
encontrou lobos irmãos, Baloo, que já estava quase cego e a pesada Kaa
enrodilhada sobre a pedra de Akelá, ainda vaga.
– Termina então aqui o teu
caminho, homenzinho? Perguntou a serpente, logo que
Mowgly se sentou. Grita o teu
grito! Somos do mesmo sangue, eu e tu, homens e serpentes!
– Porque não morri nas garras dos
dholes, gemeu Mowgly. Minha força esvaiu- se e não foi veneno. Dia e noite ouço
um passo duplo no meu caminho. Quando volto a cabeça sinto que alguém se
esconde atrás de mim. Procuro por toda parte atrás dos troncos, atrás das
pedras, e não encontro ninguém. Chamo e não tenho resposta, mas sinto que alguém
me ouve e se guarda de responder. Se me deito, não consigo descanso. Corria
corrida da primavera e não sosseguei.
Banho-me e não me refresco. O
caçar enfada-me. A flor vermelha está a ferver em meu sangue.
Meus ossos viraram água. Não sei
o que...
– Para que falar? Observou Baloo.
Akelá disse que Mowgly levaria Mowgly para a alcateia dos homens outra vez.
Também eu o disse, mas que ouve Baloo? Bagheera, onde está Bagheera esta noite?
Ela também sabe disso, é da lei.
– Quando nos encontramos nas
Tocas Frias, homenzinho, eu já o sabia. - acrescentou
Kaa... - Homem vai para homens,
embora o Jângal não o expulse.
– A Jângal não me expulsa, então?
Sussurou Mowgly.
O irmão Gris e os outros 3
uivaram furiosamente:
– Enquanto vivermos ninguém
ousará...
Mas Baloo interrompeu:
– Eu ensinei-lhe a lei, disse. A
mim cabe falar, embora meus olhos não vejam a pedra que está perto, enxergam
tudo que está longe. Rãzinha, toma teu trilho, faz teu ninho com esposa do teu
próprio sangue e de tua raça; mas quando necessitares pata, olho ou dente,
lembra-te, senhor do Jângal, que todo o Jângal acudirá o teu apelo.
– Também o Jângal médio estará
contigo , disse Kaa. Falo por um povo muito numeroso.
– Ai de mim! Exclamou Mowgly em
soluços. Eu não sei o que sei! Não vou, não vou, não quero ir, mas sinto-me
arrastado por ambos os pés. Como poderei deixar de viver estas noites do Jângal?
– Ergue os olhos, irmãozinho,
disse Baloo. Não há mal nisso. Quando o mel está comido, abandonamos os favos.
– Depois que soltamos a pele
velha, não podemos vestir de novo, ajuntou Kaa. É da lei.
– Ouve querido de todos nós,
disse Ballo. Não há aqui, nem haverá, palavra que te
detenha entre nós. Ergue os
olhos! Quem ousará interpelar o senhor do Jângal? Eu te vi brincando no
pedregulho, lá embaixo, quando não passava de pequenina rã; e Bagheera, que te
comprou pelo preço de um touro gordo, viu-te também. Daquela noite do “ Olhai,
olhai bem ó lobos!”, só ela e eu restamos de testemunhas; Raksha, tua mãe
adotiva, está morta, teu pai adotivo está morto; a velha alcatéia daquele tempo
não existe; tu sabes o fim que teve Shere-Kahn e viste Akelá acabar entre os
dholes, que nos teriam destruído se não fosses tu. Só vejo ossos, velhos ossos.
Hoje não é o filhote de homem que pede licença a sua alctéia, é o senhor do
Jângal que resolve mudar de caminho. Quem pedirá contas ao homem do que ele
quer ou faz?
– Bagheera e o touro que me
comprou! Respondeu Mowgly. Eu jamais...
Suas palavras foram interrompidas
por um rumor nas moitas próximas. Lépida, forte e
terrível como sempre, Bagheera
acabava de saltar para dentro do grupo.
– Pelo que acabas de dizer -
disse ela, estirando o corpo - não vim. Andei em caçada
longa, mas agora ele está morto
na relva, um touro de 2 anos, o touro que te vai libertar, irmãozinho!
Todas as dívidas assim ficam
pagas. Além disso, minha palavara é a palavra de Baloo.
A pantera lambeu os pés de
Mowgly.
– Lembra-te que Bagheera te ama,
disse ela por fim, retirando-se num salto. No sopé da colina entreparou e
gritou: Boas caçadas em teu novo caminho, senhor da Jângal! Lembra-te sempre
que Bagheera te ama.
– Tu a ouviste, murmurou Baloo.
Nada mais há a dizer. Vai agora, mas antes vem a mim.
Vem a mim, ó sábia rãzinha!
– É difícil arrancar a pele,
murmurou Kaa, enquanto Mowgly rompia em soluços com a
cabeça junto ao coração de urso
cego, que tentava lamber-lhe os pés.
– As estrelas desmaiam, concluiu
o lobo Gris, de olhos erguidos para oa céu. Onde me
aninharei
doravante? Porque agora os caminhos são novos...